Saúde mental nos apps de namoro: excesso de matches, frustração e a dificuldade de construir vínculos reais


Vivemos em uma era em que basta deslizar o dedo para que alguém, em algum lugar, esteja “ao alcance” de um encontro. Os aplicativos de namoro — Tinder, Bumble, Happn, Grindr e tantos outros — criaram uma nova forma de estar disponível para o desejo, o afeto e até mesmo para a construção de relações duradouras. No entanto, essa aparente abundância também traz uma série de desafios emocionais e psíquicos que a psicanálise contemporânea e a sexologia clínica têm buscado compreender.
Mais do que nunca, precisamos refletir: como lidar com o excesso de possibilidades sem perder a capacidade de criar vínculos reais?
O paradoxo do excesso: quando muitos matches não significam conexão
Na superfície, parece uma vantagem: ter dezenas de matches em poucos dias pode gerar uma sensação de popularidade e validação. No entanto, essa abundância muitas vezes se transforma em vazio. Como diz Bauman (2004), em seu conceito de “amor líquido”, vivemos relações marcadas pela fragilidade e pela descartabilidade. Nos aplicativos, esse fenômeno se intensifica: o outro pode ser substituído em segundos por alguém aparentemente “mais interessante”.
A psicanálise contemporânea, ao se debruçar sobre o funcionamento psíquico nesse contexto, mostra que o sujeito se vê diante de um excesso de escolhas que, em vez de libertá-lo, o aprisiona. Lacan já apontava que “o desejo é desejo do Outro” (1960/1998), ou seja, ele nunca se satisfaz por completo. Nos apps, o excesso de matches funciona como combustível para esse desejo insaciável: sempre pode haver alguém melhor logo adiante.
Esse cenário cria um paradoxo: quanto mais opções, maior a dificuldade de escolher e, sobretudo, de investir afetivamente em alguém. A consequência? Uma frustração silenciosa que mina a autoestima e esvazia o prazer de se relacionar.
Da excitação ao esgotamento emocional
A sexologia clínica observa que a dinâmica dos aplicativos pode levar a uma excitação constante — conversas rápidas, trocas de fotos, promessas de encontros. Mas esse estímulo contínuo, sem espaço para elaboração, gera também um esgotamento emocional.
Estudos recentes mostram que usuários frequentes de aplicativos de namoro apresentam índices mais elevados de ansiedade, sintomas depressivos e baixa autoestima (Orosz et al., 2018). Isso porque o cérebro humano não foi feito para lidar com tantas micro-rejeições diárias — o “não match”, o sumiço repentino (ghosting), a falta de resposta. Cada uma dessas pequenas rupturas ativa, em maior ou menor grau, feridas narcísicas que ecoam experiências inconscientes de rejeição.
No consultório, é comum ouvir pacientes dizerem: “Eu tenho muitos matches, mas não consigo me conectar com ninguém”. Esse relato revela que a busca não é apenas pelo encontro físico, mas por reconhecimento, por ser visto de forma singular. E, quando isso não acontece, instala-se um sentimento de solidão ainda mais profundo, paradoxalmente, em meio à multidão de possibilidades.
A psicanálise e a lógica do desejo no digital
A psicanálise contemporânea nos ajuda a compreender que os aplicativos não criam o mal-estar, mas o evidenciam. Eles funcionam como palco para dinâmicas inconscientes já presentes: a compulsão pela novidade, o medo da rejeição, a dificuldade de sustentar o desejo em um só objeto.
Como destaca Zizek (2011), na sociedade contemporânea, a lógica capitalista se infiltra até no campo do desejo, transformando relações em produtos. No “mercado dos matches”, o sujeito é avaliado por segundos, reduzido a imagens e descrições curtas. Essa lógica pode intensificar ansiedades ligadas à autoimagem e ao valor pessoal.
A questão central é: estamos realmente buscando o outro ou apenas reforçando a ilusão de sermos desejados?
Construir vínculos reais em tempos líquidos
A sexologia clínica aponta que a qualidade das relações não depende da quantidade de parceiros potenciais, mas da capacidade de sustentar intimidade, comunicação e desejo ao longo do tempo. Isso exige investimento psíquico — algo que o ritmo acelerado dos apps frequentemente inviabiliza.
Para transformar esse espaço em algo saudável, é importante resgatar alguns pontos:
Autoconhecimento: entender quais são nossos desejos e limites, para não sermos engolidos pela lógica da performance.
Ritmo: permitir que conversas e encontros amadureçam, em vez de cair na pressa do “próximo”.
Singularidade: olhar para o outro além das imagens e descrições, reconhecendo sua complexidade.
Psicoterapia: buscar acompanhamento pode ajudar a elaborar frustrações, fortalecer a autoestima e transformar padrões repetitivos de relação.
Um olhar humanizado
É fundamental lembrar que não se trata de demonizar os aplicativos. Eles podem ser ferramentas valiosas para encontros genuínos. O desafio é aprender a usá-los sem perder de vista nossa saúde mental e nossa capacidade de amar de forma singular.
A psicanálise nos lembra que o desejo sempre guarda uma falta, e a sexologia nos mostra que vínculos verdadeiros se constroem no encontro real — com todas as suas imperfeições, silêncios e tempos próprios.
Talvez o maior investimento que possamos fazer, em meio ao excesso de matches, seja cultivar nossa própria capacidade de sustentar o desejo e o afeto. Porque, no fim, não são os números que contam, mas a qualidade dos vínculos que conseguimos construir.
Referências bibliográficas
Bauman, Z. (2004). Amor líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar.
Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1960).
Orosz, G., Tóth-Király, I., Bőthe, B., Melher, D., & Demetrovics, Z. (2018). The personality, motivational, and need-based background of problematic Tinder use. Journal of Behavioral Addictions, 7(2), 301–316.
Zizek, S. (2011). Vivendo no fim dos tempos. São Paulo: Boitempo.
