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“Me liga quando chegar” : O monitoramento nos relacionamentos e o limite entre o cuidado e controle

Graziela Vasconcelos

4/7/20254 min ler

A tecnologia encurtou distâncias, aproximou pessoas, facilitou encontros e, ao mesmo tempo, tornou mais sutil — e perigoso — o controle nas relações. Hoje, não é incomum encontrar casais que compartilham senhas, localização em tempo real ou que fazem chamadas de vídeo constantes “para matar a saudade”. Mas em que momento esse comportamento, aparentemente inofensivo ou até romântico, começa a se transformar em uma prisão digital?

Este texto propõe uma reflexão sobre os acordos de monitoramento entre casais — como o uso do GPS, chamadas de vídeo, check-ins constantes e senhas compartilhadas — sob o olhar da psicologia e da psicanálise, com foco na liberdade, na confiança e nos pactos amorosos que construímos.

Quando o “cuidado” começa a machucar

“Me avisa quando chegar.” “Manda sua localização.” “Deixa a câmera ligada.” Frases como essas, tão presentes no cotidiano, podem sinalizar carinho — mas também podem esconder uma necessidade de controle. A linha que separa o cuidado da vigilância é tênue e passa por algo fundamental: o acordo consciente e saudável entre as partes.

Segundo o psicólogo Walter Riso (2016), a confiança é um pilar essencial em qualquer relacionamento amoroso. Quando ela se perde ou não é construída, dá lugar à desconfiança crônica, e é aí que os dispositivos de controle entram como muletas emocionais. “Quem ama de forma saudável deseja o bem-estar do outro, mesmo que isso implique em limites pessoais”, diz Riso.

Os pactos silenciosos do amor

Na prática clínica, observamos que muitos casais constroem “pactos silenciosos”, que acabam se naturalizando com o tempo. São combinados não verbalizados, muitas vezes impostos sob a justificativa do amor. “Se você me ama, não vai se importar em compartilhar sua senha.” Essa lógica se sustenta numa ideia deturpada de intimidade e pode camuflar formas sutis de abuso psicológico.

A psicanalista francesa Marie-France Hirigoyen (2000) fala da violência perversa como um processo que se instaura aos poucos, minando a autoestima e a liberdade do outro. Ela observa que o controle excessivo é um dos instrumentos mais comuns nesse tipo de dinâmica, travestido de zelo e preocupação. Quando alguém se vê vigiado o tempo todo, o medo de errar ou desagradar começa a tomar o lugar do afeto.

O desejo de saber tudo: um sintoma?

Na perspectiva psicanalítica, o desejo de saber onde o outro está o tempo todo pode ser lido como sintoma de uma angústia profunda frente à separação e à alteridade. O outro, no amor, nunca será inteiramente decifrável. E isso dói.

Freud (1929) já apontava, em O Mal-Estar na Civilização, que a vida em sociedade exige a renúncia de certos impulsos — entre eles, o de posse total do outro. Amar, para a psicanálise, é aceitar a falta, a ausência e o mistério que o outro carrega. Como afirma Lacan, “amar é dar o que não se tem a alguém que não o é”.

Assim, a tentativa de eliminar a incerteza através do monitoramento constante é, na verdade, um mecanismo de defesa contra a angústia de perder. Mas ao tentar controlar, acabamos sufocando.

Acordos saudáveis: existem?

Sim. É possível que um casal faça um acordo para compartilhar a localização ou usar chamadas de vídeo, por exemplo, desde que isso seja negociado com maturidade, sem imposição e com espaço para revisão. O problema está quando esses pactos se tornam obrigações ou testes de fidelidade.

Segundo o psicólogo Steven Stosny (2004), relações saudáveis são construídas a partir da autonomia emocional. “Quando você tenta controlar alguém por medo de perdê-lo, na verdade está criando o cenário ideal para que ele se vá.”

A psicóloga e terapeuta de casais Esther Perel (2018) também lembra que o desejo amoroso depende do mistério, do espaço e da liberdade. Ela alerta: “intimidade não é o mesmo que fusão. Precisamos de um pouco de distância para que o desejo sobreviva.”

O papel da terapia

Nos consultórios, é cada vez mais comum escutar pacientes trazendo queixas relacionadas ao controle excessivo nas relações: “ele quer que eu fique o tempo todo em chamada de vídeo”, “ela quer que eu compartilhe onde estou 24 horas por dia”. Quando isso surge, é importante trabalhar as inseguranças, os traumas anteriores e os modelos de amor internalizados.

A terapia de casal pode ser um ótimo espaço para renegociar esses contratos. Nem sempre o outro está disposto a conversar, e nesse caso, o processo individual ajuda a fortalecer os limites e a autoestima.

Quando o monitoramento é sinal de abuso

Existem situações em que o monitoramento constante não é apenas uma questão de insegurança, mas um sintoma claro de relacionamento abusivo. A Lei Maria da Penha, por exemplo, reconhece o controle da vida da mulher como uma forma de violência psicológica.

Se o parceiro ou parceira exige que você envie fotos, compartilhe senhas, proíba certos contatos ou fiscalize cada passo — isso não é amor, é controle. E controle não é cuidado.

Conclusão: o que queremos quando queremos saber tudo?

No fundo, a pergunta que precisamos nos fazer é: o que está por trás do desejo de saber onde o outro está, o tempo todo? Será que estamos em busca de segurança ou de poder? Estamos cuidando ou querendo dominar?

O verdadeiro amor nasce quando há espaço para o outro existir como ele é, com suas vontades, segredos e ausências. E isso exige coragem — a mesma coragem que precisamos para amar de verdade.

Referências bibliográficas:

  • Freud, S. (1929). O mal-estar na civilização. Edição standard brasileira.

  • Hirigoyen, M. F. (2000). O assédio moral: a violência perversa no cotidiano. Bertrand Brasil.

  • Lacan, J. (1960). O Seminário – Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Zahar.

  • Perel, E. (2018). Casos e Casos: Terapia de Casal na Vida Real. Objetiva.

  • Riso, W. (2016). Amar ou depender? Como superar o apego afetivo e fazer do amor uma experiência plena e saudável. Planeta.

  • Stosny, S. (2004). You Don't Have to Take It Anymore: Turn Your Resentful, Angry, or Emotionally Abusive Relationship into a Compassionate, Loving One. Free Press.